quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A GUERRA FISCAL DO ICMS: QUEM GANHA E QUEM PERDE*

Nenhum governador é desinformado e, entre eles, é raríssimo um caso de miopia econômica. Todos sabem que, no limite, o desfecho da guerra fiscal do ICMS será o relatado nos parágrafos anteriores. Mas sabem também que, enquanto o limite não for atingido, há ganhos a serem obtidos fazendo a guerra fiscal. Nessa questão, existem claramente erros de sinalização econômica, que criam divergências entre os objetivos nacionais e estaduais e entre a melhor estratégia de desenvolvimento do estado a curto e a longo prazo.

Os vinte e dois anos de vigência e inobservância da LC no 24/75 autorizam a conjectura de que os estímulos econômicos prevalecem sobre as disposições legais que coíbem a guerra fiscal. Metade desse tempo decorreu durante o regime autoritário, e nem mesmo nele foi possível juntar vontade política suficiente para exigir o cumprimento da lei. Podese tentar, como fez o projeto de lei do qual resultou a LC no 87/96, ampliar as restrições à guerra fiscal. Mas, mesmo que se consiga apoio político para transformar a proposta em lei, pode-se antecipar que as disposições legais mais drásticas serão igualmente descumpridas.

A solução para a questão reside na mudança da sinalização econômica, de modo que se minimize o estímulo à participação na guerra. Como se mostrou neste artigo, um forte sinal na direção errada é fornecido pela legislação que trata da tributação dos fluxos de comércio interestadual pelo ICMS. Como se viu, a solução salomônica adotada para a apropriação da receita das operações interestaduais dá margem à exacerbação da guerra fiscal.

Do ponto de vista nacional, o ICMS é hoje um imposto sobre o consumo; mas, na ótica de cada estado, é um híbrido — parte imposto sobre a produção do estado, e parte sobre o seu consumo. Como a mobilidade dos fatores de produção, especialmente a do capital, é muito maior que a dos consumidores, o imposto sobre a produção é arma muito mais poderosa na guerra fiscal que o de consumo. A minimização do estímulo para dela participar requer que se transforme o ICMS em um imposto sobre consumo também do ponto de vista do governo estadual. Para tanto, basta adotar o princípio de destino para a tributação dos fluxos interestaduais, a exemplo do que já se faz no comércio exterior.

Adotar o princípio de destino significa eliminar a alíquota interestadual do imposto. Isso feito, todos os produtos destinados ao consumo em determinado estado — sejam eles produzidos no próprio estado, em outro ou no exterior — geram arrecadação exclusivamente para aquele estado; e bens ali produzidos, destinados a outros estados ou ao exterior, não são por ele tributados.

Essa sistemática não elimina de todo a guerra fiscal, mas impõe fortíssima restrição à eficácia dos incentivos do ICMS. Como todas as saídas de mercadorias destinadas a outros estados ou ao exterior não são tributadas, não servem de base para a concessão de incentivos; e como a Constituição veda aos estados estabelecer diferença tributária entre bens em razão de sua procedência ou destino, não há como privilegiar o consumo de bens produzidos no estado. (5) A única forma possível de conceder benefício fiscal para atrair empreendimentos é a redução do imposto a recolher, cujo valor agora depende do volume de vendas da empresa para dentro do estado. Evidentemente, somente as empresas que pretendam dirigir sua produção primordialmente para esse mercado poderão ser atraídas. Ademais, elimina-se a hipótese — que, como se viu, existe atualmente e não é mera curiosidade teórica, pois efetivamente ocorre — de um estado conceder incentivo, e outro pagar a conta.

A adoção do princípio de destino tem outras vantagens: (i) elimina a injusta redistribuição de receita entre estados que hoje existe quando uma saída tributada de mercadoria para outro estado é seguida de uma saída isenta (ou de nenhuma), caso em que um estado arrecada e outro concede o crédito de imposto;(6) (ii) possibilita a isenção (ou redução da alíquota) de produtos cujo consumo tem peso importante nos orçamentos das famílias mais pobres, sem causar danos maiores à arrecadação de estados que tenham produção fortemente concentrada naqueles bens; e (iii) promove profunda alteração na distribuição dos recursos fiscais estaduais em favor dos estados importadores líquidos em comércio interestadual, que vêm a ser os mais pobres.

A última das vantagens mencionadas é também uma das dificuldades que se apresentam para a implantação do princípio de destino. Os estados exportadores líquidos no comércio interestadual são numericamente poucos, mas são importantes tanto em termos de movimento econômico quanto politicamente. São Paulo, por exemplo, sofreria uma perda superior a 10% de sua arrecadação total, dificilmente suportável se for abrupta (7).

(5) Ver artigo 152 da Constituição Federal de 1988.

(6) Esse é o caso das exportações, aqui tratado, bem como dos bens de capital.

(7) Evidentemente, a essa perda correspondem grandes ganhos para os estados menos desenvolvidos, dado que a receita total dos estados não se altera com a adoção do princípio de destino.

A solução óbvia para contornar essa dificuldade é a implantação gradual, reduzindo-se paulatinamente a alíquota estadual até zero. Outra dificuldade, também contornável, é a necessidade de reestruturação das administrações fazendárias estaduais, principalmente nos estados menos desenvolvidos. A arrecadação está atualmente concentrada em um número relativamente pequeno de contribuintes, o que leva a administração a focalizar nelas o controle. Com o princípio de destino, ocorre diluição da arrecadação, o que requer alteração nos métodos de fiscalização.

A última das dificuldades é o aumento do estímulo à sonegação. A diferença entre as alíquotas interestadual e interna estimula o mau contribuinte a simular uma operação interestadual e entregar a mercadoria no próprio estado, dando início a uma cadeia de evasão. O problema, que já é grave, seria ampliado com a eliminação da alíquota aplicável a operações interestaduais. Esse problema é solucionado pela Proposta de Emenda Constitucional que altera o capítulo do sistema tributário — PEC no 175/95 —, que ora tramita no Congresso: substitui-se o imposto sobre produtos industrializados (IPI) e o ICMS por um novo imposto de características semelhantes ao último, partilhado pela União e pelos estados, e cria-se um mecanismo que elimina completamente o tipo de sonegação mencionado, inclusive no caso de se vir a adotar o princípio de destino.

A PEC no 175/95 deixa a cargo do Senado Federal a decisão de pôr em prática o princípio de destino. Sendo este um possante instrumento para coibir a guerra fiscal — além de apresentar outras virtudes, inclusive a de beneficiar estados menos desenvolvidos —, é preferível assegurar sua adoção no próprio corpo da Constituição, prevendo-se sua implantação progressiva. Para que a guerra fiscal praticamente termine, basta que o Congresso Nacional emende a PEC no 175/95 nesse sentido e providencie sua aprovação.


*Ricardo Varsano

(Coordenador geral de estudos setoriais da Diretoria de Pesquisa do IPEA).

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